Busca
 
 

Fale conosco! fale conosco!

Calendário



« DESTAQUES »

Formatura do CBM/2023

NOTA DE REPÚDIO

Carta ao PARNASO

CURSOS

As Descidas Vertiginosas do Dedo de Deus (2a Edição)

Carta Aberta aos Montanhistas do Rio de Janeiro e à Sociedade

Diretoria e Corpo de Guias

Equipamento individual básico

Recomendações aos Novos Sócios

2ª Carta Aberta aos Montanhistas do Rio de Janeiro e à Sociedade



Sexta-feira, 19 de abril de 2024

Você está em: BoletinsBoletim n°11 - Dez. 2006
Boletim n°11 - Dez. 2006
ETGE/2005 - Estágio Supervisionado‹‹ anterior 
|
 próxima ››Curso Básico de Montanhismo/2006

El Misti I

Buarque

Em julho de 2004, Borges, Raquel, Godinho e eu viajamos ao Peru para conhecer um pouco de suas montanhas, cultura e história.

Na verdade, nós não fomos juntos para lá e nos encontraríamos apenas na metade da viagem, em Huaraz, a Meca dos montanhistas no Peru, cravada no meio da Cordillera Blanca. A Raquel, mais apaixonada pelas riquezas arqueológicas, preferiu pular essa parte e conhecer os museus de Lima, após ter visitado Cusco e Machu Pichu (a Meca dos turistas no Peru) com o Borges.

No começo da viagem, acompanhado pela Raquel, o Borges percorreu o Vale Sagrado e frequentou alguns restaurantes quentes de Cusco (um deles chegou mesmo a se incendiar...), enquanto Godinho e eu passeávamos por Arequipa, para tentar subir o que seria nossa primeira alta montanha: o vulcão El Misti, com seus 5825 metros.

Arequipa, conhecida como "la ciudad blanca", fica a cerca de 1000 km (por estrada) ao sul de Lima e chega-se lá após 15 horas de viagem de ônibus através da costa desértica do Peru e suas paisagens lunares. A cidade em si é bem mais verde e simpática do que suas vizinhanças, sendo cortada pelo rio Chili. Marcada por um povo hospitaleiro e muito orgulhoso da terra onde vive, Arequipa é cercada por impressionantes nevados, entre eles o Pichu-Pichu (5664 m), Chachani (6075 m) e o onipresente Vulcão El Misti, nosso objetivo principal na viagem. A impressão que se tem é a de que o Misti fica mesmo dentro da cidade, como se no Rio ele ocupasse o lugar do nosso menos altaneiro (porém mais verdejante) Pico da Tijuca. Por onde quer que você ande nessa cidade de casas baixas e estilo colonial, sente-se sempre o olhar da montanha lhe acompanhando. Por essa razão ele é considerado o apu ou montanha tutelar de Arequipa, além de ser também o cartão postal mais conhecido da cidade.

A subida ao Misti não é considerada técnica e nem das mais difíceis para uma montanha tão alta, sendo este um dos programas que muitos arequipenhos, montanhistas ou não, fazem questão de realizar pelo menos uma vez na vida. Isto nos animou a tentar essa ascensão logo no começo da viagem, pois tínhamos pouco tempo por conta de uma programação de viagem com muitas idas e vindas entre o norte e o sul do Peru (culpa do Borges, que só poderia nos encontrar em Huaraz no meio da viagem).

Outro fator que nos ajudou bastante a escolher esse objetivo foram as diversas dicas das arequipenhas Clety e Gabriela, além da orientação do Toño, irmão da Gabriela que ainda havia se oferecido para nos guiar ao cume. Planejamos passar dois dias em Arequipa, só para organizar as coisas antes da subida e ir nos acostumando com a altitude. Mas como a cidade fica a apenas 2600 m, descobrimos só mais tarde que esses dois dias não poderiam ser considerados uma aclimatação decente...

Porém, a visão do grandioso Misti, cônico, vulcânico e branco, recortado contra o céu azul e “logo ali na esquina” é um chamado difícil de ignorar para quem passeia pelas ruas de Arequipa e se diz montanhista. Por isso estávamos muito empolgados quando fomos preparar nossas coisas na véspera da subida que duraria dois dias envolvendo um pernoite a 4700m.

Acordamos de manhãzinha, como em qualquer excursão que fazemos por aqui, e pegamos o jipe que havíamos contratado na véspera para nos levar ao início da trilha e nos trazer de volta no dia seguinte. O primo do Toño, Álvaro, também nos acompanharia na subida. A manhã estava bem fria, mas o dia prometia ser bem ensolarado, o que é regra em Arequipa onde as chuvas são raras. Mochila nas costas e toca para cima, cruzando uma vegetação composta principalmente por pequenos arbustos secos e moitas de ichu, um capim resistente que domina as regiões andinas e espeta os incautos. Conforme se vai subindo, mesmo esses arbustos vão se tornando cada vez mais raros, junto com o oxigênio. E para “ajudar” os infelizes mal aclimatados, o solo na subida passa a ser totalmente constituído por fofas cinzas vulcânicas com alguns blocos de pedra aqui e ali onde você procura pisar para não afundar muito.

A essa altura, eu estava sendo formalmente apresentado ao soroche - o mal da altitude - que começava a me pesar bem mais que a mochila. Assim, a minha subida foi sendo feita com cada vez mais numerosas e demoradas paradas para tentar recuperar o fôlego. Um pouco antes do ponto onde iríamos acampar, eu já havia me conformado em estabelecer modestíssimas metas de uns 10 metros entre uma parada e outra, e, para meu desespero, mesmo essas metas estavam difíceis de serem cumpridas. Mas acabei chegando onde o resto do grupo me aguardava para armar o acampamento. O lugar era um platô na encosta de cinzas, onde já havia alguns nichos de pedras estrategicamente empilhadas para proteger as barracas do vento. Nesse local o gelo estava presente nos pontos onde o sol batia por menos tempo.

Preparamos o jantar ainda com a luz do dia, pois acordaríamos por volta de uma da manhã para atacar o cume. Como meu estômago, acostumado apenas com a boa vida ao nível do mar, manifestava violentamente sua revolta comigo e com a idéia de passar de 3000 metros fora de um avião, não consegui comer nada do macarrão que, por isso, talvez não estivesse tão ruim quanto eu me lembro hoje. Fomos dormir logo após tomar um pouco de mate de coca, mas a essa altura o estômago já havia conseguido incitar sua revolta também aos órgãos vizinhos, impossibilitando muito o sono e me obrigando a sair da barraca para tentar tornar um pouco mais fértil aquela árida encosta. De madrugada, na hora de levantar, eu já estava totalmente convencido a ficar por ali mesmo, “tomando conta das barracas”, uma nobre e necessária função naquele deserto. Acompanhei a saída do pessoal e voltei para dentro da barraca onde havia então mais espaço para agonizar, rolando de um lado para o outro de forma mais confortável.

De manhã, ao acordar, me arrisquei a comer pelo menos uma balinha para não ficar em jejum absoluto. Mas não adiantou, porque logo em seguida tive que chamar o Juan (o “Raul” dos Andes) e lá se foi a balinha embora. Depois disso, comecei aos poucos a me sentir melhor e pude então aproveitar mais o lugar e tirar umas fotos enquanto esperava a volta do pessoal. Passadas algumas horas, apareceu sozinho o Toño, dizendo que descera na frente dos outros para adiantar a arrumação para nossa partida. Ele avisou que o Godinho havia conseguido chegar ao cume, mas estava acabado e descia bem devagar acompanhado pelo Álvaro.

Desarmamos as barracas e ficamos esperando ansiosos por algumas horas, tentando contato pelos radinhos talk-about, até que finalmente apareceu o Álvaro seguido ao longe pelo Godinho que descia aos tropeços, mais pra lá do que pra cá. O Álvaro chegava em melhores condições, mas havia desistido da subida um pouco antes do cume.

O Godinho, catatônico, se esforçou para comer alguns pêssegos em calda, se reidratar e só depois de um longo descanso recomeçamos a descida bem devagar, acompanhando seus passos cambaleantes. Eu, por outro lado, já me sentia bem melhor, quase feliz, e tentava ajudar onde era possível para manter meu amigo no prumo. Mesmo assim, só chegamos ao fim da trilha quando a noite já estava avançada. Alcançamos o jipe que nos aguardava e voltamos para desmaiar em nossas camas. Ainda consegui tomar um banho para retirar a poeira, mas o Godinho mal tirou as botas cheias de areia antes de apagar.

Passamos mais um dia conhecendo Arequipa e descobrimos que, na noite em que estivéramos no Misti, tinha havido um tremor de terra, o que é bem comum por lá. No dia seguinte já estávamos partindo com destino à segunda parte da nossa viagem em Huaraz. Lá encontraríamos o nosso companheiro Borges para outras belíssimas excursões que me consolariam pelo fato de não ter conseguido colocar os pés no cume do Misti. Mas minha história com esse vulcão ainda não havia terminado e eu voltaria a encontrá-lo mais uma vez nessa mesma viagem...


ETGE/2005 - Estágio Supervisionado‹‹ anterior 
|
 próxima ››Curso Básico de Montanhismo/2006

Versão para impressão: