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Sábado, 20 de abril de 2024

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Boletim n°12 - Dez. 2007
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Patagônia 2006

1ª parte
Primeiras Escaladas em Bariloche


Em janeiro de 2006, Borges, Leo e eu realizamos uma viagem à Patagônia, com o objetivo de escalarmos na região de Bariloche, bem como percorrermos parte da Carretera Austral até Coyhaique, visando acampar em alguns dos mais belos Parques Nacionais da Argentina e do Chile.

Durante os preparativos da viagem chegamos a pensar em fazer também a ascensão ao Vulcão Lanin. Acontece que dispúnhamos de apenas 15 dias e desse modo optamos por deixar o Lanin para uma ocasião futura. Foi uma sábia decisão, pois tivemos tempo de nos dedicar com toda calma ao que nos propusemos realizar.

No dia 20 de janeiro, à tarde, viajamos para Buenos Aires onde pernoitamos. Pela manhã, antes de viajar, eu tinha ido escalar com o Thiago sob um sol escaldante de verão. Em Buenos Aires, quando chegamos, também estava muito abafado e úmido. Tudo mudou na manhã seguinte, quando chegamos a Bariloche, com ótimo clima e montanhas cobertas de neve bem próximas. No vôo de Buenos Aires para Bariloche tivemos que pagar excesso de peso, pois nossas bagagens excediam 70 Kg. Esse peso aumentou com os mantimentos que compramos para serem consumidos nos dias de acampamento na margem sul da Laguna Toncek, próximo ao Refúgio Emilio Frey, no Parque Nacional Nahuel Huapi. Boa parte desse equipamento foi transportado por arrieros, a cavalo, mas, mesmo assim subimos com nossas mochilas bem pesadas por uma trilha que levou quatro horas, na manhã do dia 22 de janeiro.

Na tarde desse mesmo dia, pretendíamos fazer nossa primeira escalada na região. Borges e Leo estavam entusiasmados com as múltiplas possibilidades de escaladas bem próximas ao Refúgio Frey. Após almoçarmos uma travessa de macarrão a bolonhesa, tivemos a sensação de que não iríamos mais querer escalar nesse dia. Esta sensação durou algum tempo, mas aos poucos a motivação retornou. Interessados em encontrar alguma via bonita, segura e não muito difícil por perto, consultamos alguns montanhistas que estavam no Refúgio.

Escolhemos o Diedro de Jim, via de 50 metros, considerada uma das escaladas mais simples, segundo o livrinho que havíamos comprado no dia anterior, no Clube Andino Bariloche. Este guia de escaladas, elaborado por Rolando Garibotti, apresenta o esboço de 280 croquis de vias, em torno do Cerro Catedral. Desse modo, separamos nosso material, e em menos de dez minutos de caminhada estávamos na base da Agulha Frey. Tinha tanta gente com cordas e equipamento móvel (mas, infelizmente, nem sempre com capacete), que tivemos que entrar numa fila para iniciar a escalada. A beleza das montanhas a nossa volta ajudava a contrabalançar a sensação de que estávamos num evento de escalada esportiva, pois quase todas as vias são curtas e bastante exigentes.

Borges e Leo pareciam mais preocupados com os arrieros que ainda não haviam chegado com nossa bagagem de acampamento. Para nossa sorte, nessa época do ano só escurece às 22:00 horas, portanto, ainda tínhamos mais de cinco horas com claridade. Assim, escalamos com toda a calma e conseguimos chegar ao primeiro cume, bem próximo ao Refúgio, que estava apinhado de escaladores, caminhantes ou simples curiosos.

Quando concluímos esta primeira ascensão, começamos a sonhar com a possibilidade de escalar a Torre Principal do Cerro Catedral. Naquele momento parecia um sonho muito distante, quase impossível, mas o fato é que, graças a nossa união esse sonho viria a ser concretizado cinco dias depois, constituindo o ponto alto, em todos os sentidos, de nossa expedição andina. Mas, naquele momento, tínhamos que começar a descer. Após fazermos dois rapeis desde o cume, encontramos os sacos com a nossa pesada bagagem, deixados pelo arriero Don Facundo, que já havia voltado para Bariloche com seus cavalos. Como é muito comum na Patagônia, não havia ninguém para tomar conta. Nos dias seguintes vimos pencas de equipamentos de grande valor, deixados do lado de fora das barracas sem que ninguém se preocupasse, enquanto por aqui, precisamos muitas vezes até desmontar as barracas e esconder na mata, caso contrário tudo some “misteriosamente”. Ainda temos muito que evoluir. E esta evolução está acima da técnica.

Armamos o acampamento num lugar bem protegido do vento, próximo ao lago, com visual esplendoroso. Por cinco noites seguidas dormimos nessa barraca, onde nos recuperamos de jornadas muito exaustivas. Somente no sexto dia, retornamos para a cidade de Bariloche com o objetivo de iniciarmos uma nova etapa da viagem, quando alugamos um carro e viajamos pouco mais de 2000 Km por estradas nem sempre muito transitáveis, que nos levaram a furar dois pneus ao mesmo tempo. Sem acontecimentos como esse, uma viagem corre o risco de ser um tanto monótona. Não foi o que vivenciamos, pois não faltou emoção, não faltou alumbramento a cada dia.

Dia 23 de janeiro amanhecemos pela primeira vez no nosso acampamento e o dia estava estupendo. Tomamos um café reforçado com toda calma e decidimos tentar algumas escaladas na Agulha El Abuelo. Leo comentou: “Se formos eficientes poderemos fazer umas quatro vias antes do almoço”. As escaladas que escolhemos não passavam de 30 metros cada uma e, no entanto, sofremos o diabo para fazer a primeira delas, chamada Canal Estalactita. Parecia muito convidativa, mas foi bastante trabalhosa. Somente às 15:00 horas foi que conseguimos retornar à base após havermos atingido o cume. Borges então comentou: “Acho que não fomos muito eficientes”.

O problema principal é a grande quantidade de pedras soltas, algumas verdadeiramente assustadoras, que há nas vias da região do Cerro Catedral. Eu começava invejar os que passavam lá longe com suas mochilas cargueiras a caminhar, sem ousar desafiar estas agulhas. De qualquer modo, escalar El Abuelo foi marcante para mim, mesmo tendo subido com segurança de cima dada por meus companheiros que se adaptavam mais rapidamente do que eu ao que, a princípio, parecia inadaptável. Não sei como ainda fomos fazer uma segunda escalada, após havermos rapelado essa Agulha. Vale dizer que as descidas são quase sempre mais assustadoras que as subidas.

Ainda dispúnhamos de bastante tempo antes que começasse a escurecer, mas custamos a nos decidir, pois ficou nublado e parecia que ia chover. Esperamos um pouco, o tempo abriu de novo e lá fomos nós para a via Del Diedro, na face oeste da Agulha M2. Não sei como foi que consegui chegar lá em cima. Ou melhor, sei muito bem: Viva os jumares! Eu nunca pensei que iria jumarear em móvel, mas esse dia chegou. De qualquer modo nós estávamos aprendendo. Sofrendo um pouco, mas aprendendo. Voltamos ao acampamento, nos alimentamos como deve ser e fomos dormir.

Decidimos no dia seguinte tentar atacar uma via com um nome estranho: Ñaca Ñaca Crunch Crunch, também em El Abuelo, só que bem mais desafiadora, por ser maior e toda em móvel. Leo estava inspirado. Essa via, para nós, ia ser o divisor de águas. Foram ao todo seis esticões até o cume, em que usamos todo o equipamento que dispúnhamos: duas cordas de 60 metros, 78 mosquetões, 32 fitas, 22 friends e 15 nuts de cabo, sem contar o equipamento individual. Foi um dia muito exaustivo, física e mentalmente falando, com todos os pontos de parada em móvel e sem qualquer proteção fixa. Por sorte havia fendas em profusão. Estranhamos a ausência de pontos fixos para uma descida emergencial. Não posso imaginar as conseqüências de uma simples chuva, que venha impedir o prosseguimento da escalada... Leo brilhou, bem como Borges e penso que não decepcionei. A via onde estávamos terminava num platô, que permitia contornar a montanha, mas prosseguimos até o cume pela Variante Jason. Desse modo, pelo segundo dia seguido, chegamos ao topo de El Abuelo, esse penhasco tão incrível, no meio de outros ainda mais incríveis. O medo foi muito grande, mas valeu a pena todo o esforço no sentido de superá-lo. Ficamos um bom tempo no cume, pois aqueles momentos de felicidade mereciam ser comemorados com toda efusão.

Quando voltamos ao acampamento, combinamos dedicar o dia seguinte para estudarmos o caminho que leva à Torre Principal. Para isso não precisávamos acordar muito cedo, pois pretendíamos estar descansados para tentar essa tão sonhada escalada dois dias depois. O jantar foi preparado com todo o requinte, pois tínhamos muito que comemorar. Brindamos com vinho a nossa amizade, o que já realizamos juntos no montanhismo e o porvir.

Sem a menor pressa, no dia seguinte, acordamos mais tarde e optamos por escalar o Tonto, uma montanha ainda mais alta que El Abuelo, mas de acesso bem mais simples. De fato a subida foi rápida, porém a descida foi uma das mais desafiadoras que nós já fizemos na vida, com pontos de paradas duplos (por meio de chapeletas de aço inox) em meio a negativos arrepiantes. El Tonto valeu pela descida e pelo visual do cume. Quando fizemos o primeiro rapel, Borges e eu estávamos ali naquela chapeleta dupla, com o Leo ainda no cume. Procurei afastar do meu pensamento o que já li sobre o fato das chapeletas de aço perderem parte da sua resistência em função da brusca variação de temperatura das montanhas andinas. Lembrei-me do Tarcísio, pois estávamos num autêntico “platô de fitinha”, como se estivéssemos na vertiginosa Descida Rio de Janeiro, no Dedo de Deus. Desci na frente com todo cuidado para não dar tranco na corda e logo encontrei-me num assombroso negativo que, paradoxalmente, me acalmou. Logo em seguida vi o próximo ponto de parada dupla e preparei-me para chamar Borges e Leo, assim que me costurei.

Deu tudo certo. Fizemos os três rapéis e logo já estávamos indo explorar a caminhada para a Torre Principal. No caminho, Borges comentou: “Vem ver pessoal, por aqui há mais de 30 Agulhas do Diabo”.

2ª parte
Torre Principal do Cerro Catedral


Desde que chegamos ao local de acampamento próximo ao Refúgio Frey, dia 22 de janeiro, sonhávamos com a possibilidade de escalar a mais alta das montanhas da região do Cerro Catedral. A princípio, o sonho parecia muito distante. Nos dias seguintes, contudo, com as escaladas que fizemos, percebemos que poderíamos ousar ter êxito nesta empreitada. Dispúnhamos de apenas mais dois dias na região e precisaríamos de muita sorte.

Sabemos que a sorte não depende da gente, mas podemos ajudar tomando decisões conseqüentes, respeitando a montanha e nossos limites, abrindo mão de todo e qualquer vestígio de egoísmo. Louis Pasteur gostava de dizer que a sorte só ajuda aos que estão preparados. De fato, procuramos nos preparar não só nos dias que antecederam a escalada do Cerro Catedral, mas também durante toda a nossa vida de montanhistas amadores e não competitivos.

Ao colocarmos nossas mochilas nas costas na manhã do dia 26 de janeiro, Borges, Leo e eu tínhamos consciência de que estávamos iniciando uma ascensão desafiadora e plena de simbolismos. Algo nos dizia que iríamos amealhar novas emoções e que a Torre Principal viria a se tornar um marco existencial em nossas vidas.

Nos dias anteriores, conversamos com vários escaladores e obtivemos preciosas informações sobre a montanha que pretendíamos escalar, bem como as várias opções de descida. O ambiente saudável e a camaradagem existente entre os caminhantes e escaladores de vários países que estavam acampados como nós, ajudou bastante permitindo que fizéssemos escolhas sensatas de vias, antes de tentar subir e descer com segurança a Torre Principal.

No dia anterior, apesar do frio, nós até tomamos banho. Depois, nos alimentamos bem, atualizamos nossos diários e deixamos as três mochilas prontas, sem esquecer nenhum detalhe.

O grande dia amanheceu com o céu ainda mais azul que os anteriores. Tínhamos consciência de que precisaríamos nos superar e tomar todo o cuidado para que pudéssemos voltar sãos e salvos ao acampamento. E, se possível, com o brilho nos olhos e a suprema felicidade de ter compartilhado, por breves momentos que fossem, o singular e afilado cume da Torre Principal.

Sem tergiversação, num ritmo firme e ao mesmo tempo cadenciado, fizemos em duas horas a caminhada até a base da Via Normal, conquistada em 1943. Estávamos entusiasmados e ao mesmo tempo lúcidos quanto aos desafios, que seriam muitos, tanto na subida, quanto na descida. Todos esses desafios precisariam ser vencidos com destemor, prudência, intrepidez e união.

Havia neve próximo à base e também no fundo das fendas, resistindo a vários dias de sol intenso. Vale dizer que poucas semanas antes de chegarmos nevou bastante na região. Finalmente íamos começar a escalar. Leo estava bastante concentrado, compenetrado até. Borges, normalmente descontraído, também se mostrava introspectivo. Até eu que gosto de cantar nas excursões músicas do Milton Nascimento, só o fazia em pensamento. O fato é que, nós três, cada um do seu jeito, estávamos mentalizados para que tudo desse certo.

Borges escolheu um sistema de fendas bem a nossa frente e com proteção móvel começou a guiar o primeiro esticão. Havia tantas fissuras que era difícil escolher por onde subir. Mais acima, encontramos um piton muito antigo, provavelmente original da conquista. Acontece que o tal piton estava na confluência de várias fendas que se cruzavam no labirinto gretado da montanha. Consultamos o livrinho de croquis, mas este não nos ajudou muito, pois precisávamos de algo mais detalhado e o que tínhamos no papel era apenas um esboço. O jeito foi escolher um entre os muitos caminhos para cima e, desse modo, acabamos saindo da Via Normal, pois deveríamos contornar a montanha para a esquerda. Só descobrimos isso mais tarde, quando vimos uma cordada de três chilenos que escalavam abaixo de nós seguindo exatamente a Via Normal.

Eles conheciam bem a via de ascensões anteriores e nós estávamos lá pela primeira vez. Mas deu para prosseguir. Borges e Leo, revezando-se na frente, estavam verdadeiramente inspirados, o que não é novidade para quem os conhece. Fomos subindo e encontramos de novo a Via Normal mais acima. É bem verdade que perdemos muito tempo na variante por onde passamos, pois era uma via bem mais exigente. E negativa! Borges, guiando, teve que usar uma grande quantidade de nuts e friends, bem como escadinhas. Mesmo em artificial móvel, foi um esticão realmente muito difícil.

Já havíamos subido bastante e o visual a nossa volta, que já era impressionante assim que saímos da base, foi ficando inimaginavelmente vertiginoso. Todas as montanhas da região, inclusive as que tínhamos escalado nos dias anteriores, podiam ser vistas. Nos sentíamos quase levitando, pois já nos encontrávamos num ponto acima da maioria dos cumes a nossa volta. Aspirávamos prosseguir escalando até atingir o ponto mais alto da Torre Principal. Foi quando começamos a ouvir vozes de outros escaladores que subiam pelas mais diversas vias em torno da mesma montanha onde estávamos. Isso era sinal de que o fim da subida não podia estar muito longe, pois todas as vias de escalada vão afunilando e convergem para a Via Normal quando se aproximam do cume da Torre Principal.

Normalmente a montanha é um lugar apropriado para a meditação e o silêncio, e todo montanhista busca encontrar a paz quando se aproxima do cume. Mas foi muito bom encontrar outros seres humanos, mesmo que viéssemos compor uma espécie de Torre de Babel, pelos vários idiomas, que de certo modo, dificultavam a comunicação. Dificultavam mas não impediam, pois como na música de Candeia, Filosofia do Samba, “mudo é quem só se comunica com palavras”. Com boa vontade podemos nos entender por gestos, olhares e usando o linguajar do corpo.

Quando chegamos à base do último esticão, já tinha um grupo quase chegando ao cume. Logo eles iriam descer e, pela seqüência, éramos nós os próximos. Os chilenos viriam em seguida e ainda tinha mais gente a caminho, aproveitando excepcionais condições de tempo, segundo os próprios escaladores de Bariloche, acostumados com o clima da região.

Leo se apresentou para guiar o último esticão, bem aéreo e muito vertical, mas com boas proteções fixas. Borges comentou: “É todo seu. O Santa vai em seguida e eu subo por último”. Leo escalou com sua costumeira classe. A chegada ao cume é algo difícil de descrever. Mais tarde Leo contou que só faltou passar direto e cair do outro lado, pois o cume é estreito como uma lâmina. Dá para se colocar uma perna de cada lado do abismo. Quando chegou a minha vez de subir, fui deixando as costuras para o Borges, pois esses últimos lances são em diagonal. Logo Borges também se juntou a nós. Nos cumprimentamos calorosamente, compartilhando o tão sonhado cume da Torre Principal.

Nós havíamos conseguido. Três brasileiros unicerjenses no ponto mais alto do Cerro Catedral. Estávamos muito emocionados e felizes. Eram 16:00 horas e o céu continuava com um azul profundo. Vez por outra, mesmo agasalhados, sentíamos um arrepio pela brisa suave que soprava das geleiras eternas do Monte Tronador, a poucas dezenas de quilômetros de distância. Até agora não sei se o frisson era por causa do vento gelado ou do medo ancestral das verticalidades assustadoras por toda a nossa volta.

Pra todos os lados a visão era espetacular. Dava para se ver toda a cidade de Bariloche e muitos lagos azul turquesa, por entre montanhas e vales da Argentina e do Chile. Mais ao norte o Vulcão Lanin, emergindo num mar de montanhas andinas. Acionávamos nossas câmaras fotográficas, procurando também registrar com os olhos um pouco da beleza em nossa volta. Foram trinta minutos de pura adrenalina.

Nós tínhamos conseguido chegar ao cume. Faltava agora a descida, a tão temida descida. Não fossem os outros escaladores na base do último esticão esperando para subir, penso que ficaríamos mais tempo. Vale registrar que em nenhum momento nos apressaram.

Acabei sendo o último do nosso grupo a fazer o primeiro rapel. Ainda teríamos um longo caminho de elevada complexidade até a base. O segundo rapel foi feito utilizando chapeletas duplas de argolas, semelhantes às que usamos no dia anterior na fascinante descida do Tonto. Não chegava a ser um rapel negativo, mas nos sentimos envolvidos por um senhor abismo em uma parede vertical e completamente lisa, sem qualquer rachadura, como uma monolítica muralha, que houvesse sido cortada a quente por forças titânicas pré-cambrianas.

Após completarmos o terceiro rapel, feito com as duas cordas de 60 metros unidas, quase que tivemos de cortar uma das cordas, que ficou com a ponta presa em uma fenda, na hora de recolher. Para não cortar esta corda precisaríamos escalar, novamente, por uma fissura que já tinha dado muito trabalho durante a subida. Constatamos que não valia a pena, pois já era um pouco tarde e estávamos preocupados em chegar logo na base. Quando íamos cortar a corda, apareceram, descendo, lá em cima, os chilenos, que soltaram a corda. Prosseguimos a descida com muito cuidado e não tivemos mais surpresas.

No último rapel aconteceu uma coisa engraçada, pois, Leo que descia por último, teve muita dificuldade para retirar um cordelete de segurança. Vale registrar que nesse tipo de rocha muito fragmentada, cheia de bicos de pedra e buracos, cordeletes são usados para aumentar a segurança nas descidas e abandonados. Leo reclamou conosco, que já estávamos na base, pois segundo ele, eu e Borges havíamos apertado em demasia o nó. Acontece que não tínhamos posto cordelete algum naquele ponto. Quando Leo chegou à base, Borges não resistiu: “O que é isso, Leo, você vai levar para casa esse cordelete de recordação?”. No que Leo respondeu: “Pensei que vocês tinham colocado”. De fato era um cordelete muito parecido com a cordinha que dispúnhamos para produzir os nossos próprios cordeletes, que não foram necessários. Demos boas gargalhadas. De certa forma compensava um nut nosso que entrou e não saiu da fenda de jeito algum. Esse, nem os chilenos conseguiram tirar. De qualquer modo, agradecemos por eles terem evitado que cortássemos uma de nossas cordas e combinamos de mais tarde, tomarmos juntos, um vinho, no Refúgio Frey. Eles escalaram muito mais leves do que nós por conhecerem bem a via e estarem muito mais adaptados com esse tipo de rocha. Já escalaram inclusive algumas das monumentais Torres do Paine, que são montanhas com clima extremamente severo e muito mais perigosas que as do Cerro Catedral, exigindo, algumas vezes, várias semanas de espera por uma janela de tempo bom para que se possa subir com chances de sucesso.

Quando chegamos de volta ao acampamento ainda não havia anoitecido completamente. Estávamos muito felizes. Um tanto acelerados é bem verdade, pelo desgaste, mais emocional do que físico. Mas plenamente realizados.

Deixamos todo nosso equipamento na barraca, pegamos uns agasalhos e fomos para o Refúgio comemorar. Tinha tantos montanhistas, que custamos a conseguir lugar para sentar, mas não nos importamos. E tome jantar simples e ao mesmo tempo maravilhoso. Brindamos com vinho tinto da Cordilheira, com argentinos, chilenos e europeus em meio a conversas animadas não apenas sobre montanhismo, mas também literatura, futebol, viagens, filosofia, política e história. E o tempo, esse recurso precioso que nos foi dado viver, se estendendo indefinidamente nesse dia que parecia não mais acabar.

Se Borges e Leo não tivessem insistido que já estava tarde, penso que eu poderia continuar conversando a noite toda. No caminho até o acampamento, mais uma vez, contemplamos aquele céu cravejado de estrelas e demos graças à vida. Devo ter adormecido imediatamente ao entrar no saco de dormir.

3ª parte
Carretera Austral do Chile


Assim que amanheceu, tratamos de iniciar os preparativos para o retorno a Bariloche. Como nós já havíamos consumido praticamente todas as provisões, que foram bem dimensionadas, não precisamos dos cavalos para o transporte de volta. Mesmo assim as três mochilas cargueiras ficaram bastante pesadas, como não poderia deixar de ser. Nos despedimos de alguns dos amigos que fizemos nos dias anteriores e iniciamos a caminhada de descida, que levou pouco mais de três horas, num ritmo bem puxado.

No Centro de Esqui, conseguimos um transporte para a cidade e no fim da tarde tivemos notícias de nossas famílias, após seis dias sem nenhum contato. Felizmente estava tudo bem, fora a saudade. Então alugamos um carro e partimos na manhã seguinte para uma nova etapa da nossa viagem, com o objetivo de conhecer um pouco mais da Patagônia Central, acampando e caminhando em vários Parques Nacionais.

Nos seis dias seguintes cumprimos um périplo por regiões de rara beleza, seguindo mais para o sul, cruzando a Cordilheira dos Andes e prosseguindo, pela paradisíaca Ruta Austral, até a cidade chilena de Coyhaique, no Coração da Patagônia.

De todos os lugares por onde passamos vale registrar o impressionante Lago Fonck, no setor sul do Parque Nacional Nahuel Huapi. Lá conhecemos um velho guardaparque, que nos recebeu com toda a hospitalidade em sua cabana. Em meio a uma animada conversa ele nos serviu um saboroso pão, que tinha acabado de sair do forno a lenha. Sentimo-nos como se estivéssemos em uma página tirada do clássico “Walden ou a vida nos bosques”, de Henry Thoreau (1854).

Não posso esquecer suas palavras ao nos despedirmos: “Vocês são montanhistas e sabem dar valor ao que realmente vale a pena na vida, a liberdade, o contato com a natureza e a amizade. Isso que vocês estão vendo a nossa volta é apenas um pequeno pedaço do paraíso. Nasci em Buenos Aires, mas há mais de 25 anos vivo nessa região, como voluntário. Vou revelar um segredo para vocês: Aqui nas margens do Lago Fonck o tempo passa mais devagar. Não tem luz elétrica nem outros confortos da civilização. Mas há muitos tesouros ocultos, mais valiosos que o ouro. Esse lugar é mágico. Mas é preciso tempo para se descobrir. Quem vem aqui uma vez, volta para conhecer melhor. Para pescar, caminhar por essas matas, ouvir os pássaros ou o vento, apreciar as tempestades e as nevascas. É só abrir os olhos e o coração. Podemos ler um bom livro, conversar sem a menor pressa, como agora, ou não fazer nada. Agora com licença, que vou pescar meu almoço”. E concluiu: “Sei que vocês vão voltar um dia. Se eu não estiver mais aqui, cuidem desse lugar para os que virão”. Parecia um Dersu Uzala latino-americano.

Quando já estávamos no Chile, do outro lado da Cordilheira, seguindo para o sul em uma região bastante inóspita da Carretera Austral, tivemos dois pneus furados ao mesmo tempo. Só vendo para crer. Vale dizer que estávamos em uma região bastante isolada, com pouquíssimo tráfego de veículos e bem longe de qualquer cidade. Só dispúnhamos de um pneu estepe e não tínhamos como prosseguir viagem, nem voltar. Poderia ser considerado um azar desgraçado, mas eu não me deixei desanimar e comentei: “Pessoal estamos com sorte. Ninguém se machucou. São só dois pneus furados”. “É mesmo” disse o Borges ao seu estilo. “O Santa tem razão. Poderiam ser três”.

Como costuma acontecer nesses locais escassamente povoados, as pessoas sabem ser solidárias. Só na selva das cidades é que o homem, desafortunadamente, vem se esquecendo sistematicamente a importância vital da solidariedade. Lá onde estávamos, na densa floresta patagônica, cortada pela estreita e frágil Carretera Austral, num sobe e desce constante, literalmente entre montanhas abruptas da Cordilheira e os fiordes chilenos do Oceano Pacífico, encontramos ajuda assim que o primeiro carro passou. Eles se desviaram do próprio caminho e foram até a cidade mais próxima, só para nos ajudar. E lá fui eu, com dois pneus furados, conhecer Puerto Cisnes, na esperança de que pudesse resolver o problema. Acabou dando tudo certo. Perdemos umas quatro horas nessa história. Mas ganhamos alguma coisa intangível que renova a esperança na humanidade. Alguns dias depois, voltando para Bariloche para devolver o carro alugado, pernoitamos na encantadora El Bolsón, com seus variados atrativos culturais.

Dia 03 de fevereiro retornamos para Buenos Aires. Penso que aproveitamos condignamente esses 15 dias de nossa existência. No dia seguinte, Borges e Leo voltaram ao Rio de Janeiro e eu ainda ficaria mais duas semanas viajando pela Argentina e Chile. Agora com Lucia, que chegou a Buenos Aires quando eu estava prestes a ir buscá-la. No mesmo dia voamos para Mendoza.

“Se já conheço eu quero é mais.”

Santa Cruz


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