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Quarta-feira, 24 de abril de 2024

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Boletim n°14 - Mai. 2010
Ecologia numa visão mais ampla‹‹ anterior 
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Par. Amâncio Silva

Amâncio Silva em 1948 no Pico do Itabira, ESHá algum tempo eu queria conhecer essa conquista, mas por diversos motivos nunca conseguia. Na segunda fase da ETGE, chegamos a marcar duas atividades no Espirito Santo já pensando em ajudar na conquista. Na primeira, éramos 14 ao todo na excursão (12 vindo do Rio) e o melhor que pudemos fazer foi liberar o Bonolo para participar de uma investida de um dia apenas no domingo. No sábado, fomos subir a Pedra Mãe, quase colada ao Frade e à Freira, que é uma montanha muito interessante. A subida é bastante traiçoeira, pois parece um caminho bem fácil, mas ao mesmo tempo é bem exposto. A tendência é subir uma parte significativa sem corda e é preciso ter bastante cuidado para reconhecer os trechos mais perigosos e usar a corda quando o risco de acidentes é grande, não necessariamente quando é fácil ou difícil.

Finalmente, depois de tanto tempo, eu e Bonolo encontramos uma data para ir ao Espírito Santo para uma investida na Freira. Seria a terceira investida do Bonolo e a primeira minha. Na penúltima investida Edilso, Bonolo e Josias passaram por um buraco na pedra no qual, segundo os cálculos do Edilso, caberiam até três pessoas. A via já estava com cerca de 400 m conquistados. Jumarear os oito esticões na próxima investida, para tentar avançar e ainda descer tudo no mesmo dia já praticamente não valia a pena. Esse local trazia uma grande esperança para a conquista, pois até então, não havia nenhum trecho natural que oferecesse quaisquer possibilidades de bivaque. O consenso era de que teríamos grandes chances de acabar a conquista nessa investida, especialmente se dormíssemos no platô do buraco.

Uma semana antes da data combinada, ou menos, o Bonolo avisou que não poderia ir. A princípio tudo bem, pois eu continuava confirmado, juntamente com Edilso e Josias. Eu nunca havia saído do Rio sozinho para o ES e essa possibilidade mexia um pouco com a minha cabeça, pois era difícil conceber que ninguém mais quisesse ir, apesar de três pessoas ser um ótimo número para uma investida. Afinal de contas podia ser a última investida de uma via iniciada em 2004 e já com 18 investidas até então. Quem iria querer perder essa oportunidade? Fiz algumas ligações com apelos patéticos para conseguir mais algum companheiro, mas não tive sucesso. Enviei um email na quarta-feira à noite aos Guias na esperança de que alguém se manifestasse (a excursão era sábado e sairia sexta-feira à noite da Rodoviária Novo Rio). Foi com grande alegria que chegando em casa vi uma mensagem do Willy: “Acho posso ir contigo, matar a saudade de ES, pode comprar passagem de ônibus...”. Era noite de quinta-feira e eu já começava a arrumar a mochila nesse momento.

As conquistas de modo geral requerem muito planejamento e essa não foi diferente. Demorei para arrumar a mochila como se fosse a primeira conquista. A possibilidade de dormirmos no buraco, a exposição à chuva, o fato de não conhecer a via, me faziam revisar dezenas de vezes cada item. Entre tantas coisas, separei parafusos, cliffs, friends, nuts, talhadeiras, uma rede para dormir, jumares, roupa para frio e chuva - pois provavelmente dormiríamos ao relento e poderia chover (aliás, já havia passado por essa experiência nessa montanha em outra ocasião, na regrampeação do Par. Ana Elizia) - entre tantos outros apetrechos. Concentrei-me tanto na excursão que foi difícil trabalhar na sexta-feira, ou melhor, esperar o tempo passar, dado que o ônibus estava marcado para as 23h.

Na rodoviária encontrei com Willy e estávamos os dois com duas mochilas grandes e mais uma de ataque pequena, onde potencialmente tudo o que estava ali seria usado. Enquanto esperávamos o ônibus eu não conseguia parar de pensar em como levaríamos esse peso montanha acima. Por um momento me arrependi de não ter trazido o Haul-Bag, mas o fato é que não sabia se a via era suficientemente vertical para isso. Esforcei-me para dormir durante a viagem, pois minha cabeça estava a mil por hora.

A chegada na rodoviária em Cachoeiro foi emocionante. Quando nossos companheiros Edilso e Josias vieram nos buscar, nos demos conta de que havia chovido bastante no dia anterior. Um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo. No caminho, minha cabeça estava girando com os pensamentos e eu só pensava: “Como se não bastasse todo o peso que não sei como vamos carregar, a pedra ainda vai estar molhada, ou ensaboada.”. O Edilso também estava taciturno e de fato tínhamos a mesma preocupação. Um olhar bastou para nos entendermos e a perspectiva era a de que iríamos apenas até a base da conquista. Chegamos lá e nem tiramos o material da picape. Escolhemos um lugar legal para namorar a linha da via e lá ficamos, praticamente calados, por cerca de uma hora. A pedra brilhava, naquele tom prateado e mórbido após a chuva e cada um de nós travava uma luta internamente para ver até que ponto valia a pena subir com esse peso pela pedra que escorria água.

Pedra da Freira, Cachoeiro do Itapemirim, ESDurante esse tempo, o sol ameaçou sair e fazia calor e as esperanças emergiram como num passe de mágica. A linha da escalada aparentemente estava secando e, se apostássemos nossas fichas, ela provavelmente secaria nesse dia para no domingo estar perfeita. No entanto, quando começamos a tirar o material da picape, senti o peso da mochila do Josias e do Edilso. Eram visivelmente mais pesadas que a minha mochila e a do Willy e esse fato foi preponderante para que eu tomasse uma decisão. Apenas dois dormiriam no platô do buraco e os outros dois ajudariam a carregar o peso montanha acima. Eu, o mais novo, me ofereci para subir a via no primeiro dia, voltar e subir novamente no dia seguinte. Escolhi o Josias para me acompanhar nessa jornada e, apesar de não estar muito contente com a decisão, ele aceitou os motivos. Tiramos de nossas mochilas o saco de dormir, farnel em excesso, muda de roupa e tudo o mais que conseguimos eliminar, dado que voltaríamos para dormir na base, perto do carro.

Mesmo assim, a minha mochila estava incrivelmente pesada e comecei a pensar que nunca havia feito nada parecido. Estava jumareando com uma mochila cargueira, típicamente com o peso de uma mochila para fazer a Travessia Petrópolis-Teresópolis. Carregava o saco de dormir do Willy, uns 10 a 15 grampos, seis litros de água, farnel para o dia, anoraque, lanterna, pronto socorro e tantas coisas mais. Os primeiros três esticões da via são menos íngremes e, quando subimos de jumar, o peso fica concentrado basicamente na perna. Até aí tudo bem. Daí para cima, a via começa a ficar um prumo ou negativa e jumarear com uma mochila cargueira desse porte começa a se provar uma tarefa árdua. Logo no início você já tem bem claro que alguma coisa está errada, mas não há muitas opções para resolver o problema. A corda está pendurada no vazio e você tem uma mochila de 15 kg. Ou você deixa o peso nos ombros e boa parte vai para o braço e abdômen ou você pendura a mochila no baudrier e arrasta o peso para cima a cada lance.

Perspectiva de um dos pontos de paradaO tempo havia melhorado e, ao fim de seis esticões, eu começava a achar que descer tudo para subir no dia seguinte de novo estava beirando a insanidade. O tal platô para três, que, diga-se de passagem, eu não conhecia, parecia cada vez mais interessante e eu pensava: “Se cabem três, devem caber quatro. Ainda que não com todo conforto.”. Chegando ao fim do oitavo esticão, já havia me decidido que, mesmo que o lugar não fosse tão bom, dormiríamos por lá. Eu me desgastei demais para subir com o peso todo e descer tudo e subir de novo no dia seguinte não fazia sentido. Provavelmente se dormíssemos todos ali, mesmo com pouco conforto, seria mais interessante. Josias estava super contente de não precisar descer e também estava topando qualquer coisa. Havia apenas um pequeno detalhe: Eu e Josias não havíamos levado saco de dormir, roupa extra, nem farnel e água para dois dias. Falei com o Edilso sobre a possibilidade de ficarmos e ele bastante animado disse que daríamos um jeito, racionaríamos a água, farnel e o que mais fosse preciso para viabilizar. No nono esticão, quando a via sai em horizontal para a direita, passei por um buraco promissor, mas com uma pedra grande dentro e não me interessei por ele. No buraco seguinte, pensei: “Aqui caberia uma pessoa bem confortável, agora só falta ver o tal buraco para três”. Perguntei ao Edilso se era longe o tal buraco e ele me disse que esse era “o buraco” onde caberiam os três. Bom, de fato dava três pessoas de cócoras, sem muito conforto, onde a terceira ficaria praticamente fora do platô. E já começava a escurecer. Tínhamos que tomar uma decisão rápida: era isso ou voltar tudo. Inventariamos a água, o farnel, e, no auge do cansaço, o platô estava parecendo ótimo. Ficamos. Willy ficou no platô anterior, com a enorme pedra dentro que tinha uma pequena fresta de comunicação junto ao chão que ia até o nosso platô. Conseguimos, depois de algum tempo, passar uma ponta de corda por essa fresta que foi muito útil para passarmos farnel e água. Edilso tirou da mochila duas “pequenas” marmitas que eram o jantar dele e do Willy que, dado a quantidade, deu bem para nós quatro.

Aos poucos fomos nos acostumando com o platô e tentando encontrar a melhor opção para dormir sentado. Edilso colocou as mochilas nas costas, cobrindo um buraco e eu e Josias não tínhamos muito o que inventar.

A cada momento que eu pegava no sono, meu pé escorregava e eu acordava. Josias estava em um lugar claramente pior que o meu, mas por incrível que pareça não reclamava de nada. Eu pensava em como seria passar a noite inteira nessa posição, sentado, quase de cócoras. Se eu esticasse a perna, meu pé ficava para fora do platô e empurrava o Josias ainda mais para fora. Mais ou menos às onze da noite veio a chuva e ventava com toda a força. O melhor que pudemos fazer foi colocar uma lona plástica em cima de nossas cabeças e ficar segurando para ela não voar. A cada hora que um cochilava, a lona saía da mão e voava, acordando todos. Era difícil de respirar ali dentro e estávamos na dúvida se era melhor deixar a chuva cair direto em nossos rostos ou se tentaríamos segurar a lona. Pois bem, depois de uma hora a chuva se foi e ficamos ali molhados esperando o dia clarear.

Acordamos moídos em um dia ensolarado e Edilso sugeriu que apenas eu e ele fôssemos até o grampo da última investida, cerca de 60 m acima para dar uma espiada e tentar conquistar algum lance. As chances de terminarmos eram remotas, especialmente depois da chuva da noite. Subimos as cordas fixas com a pedra ensaboada e chegamos até o último grampo, mas dali não dava para estimar quantos metros faltavam até o cume. Com sorte, conquistando mais uns seis metros a pedra deitaria e ficaria mais fácil. Edilso encarou esse trecho com parafusos e alguns grampos e observou que a inclinação de fato diminuía e a vegetação que rodeia o cume já estava bem perto, apesar de faltar uns 70 m até lá. Fui até onde Edilso estava e achei melhor que ele continuasse conquistando. Agora, já na vegetação, conseguiu fazer um lance de uns 10 m - que secos não devem ser muito difíceis, mas molhados não estavam nada fáceis – e me puxou dali. Desse ponto para o cume, praticamente caminhamos pela vegetação e não foi necessário mais nenhum grampo.

Comemoramos muito a chegada ao cume e pensávamos em nossos companheiros que haviam ficado. Era muito injusto que Josias, por exemplo, que havia participado de 18 das 19 investidas, não estivesse lá conosco. Mas tanto ele quanto Willy estavam lá para ajudar e, sem eles, não estaríamos no cume. Isso é uma coisa importante de observar na hora de identificar os conquistadores da via. Não consigo entender como algumas pessoas divulgam suas conquistas e classificam alguns como conquistadores e outros meramente como “apoio”.

Ficamos uns 30 minutos no cume e começamos a estudar a volta. Edilso queria fazer uma nova descida para retificar o final da via. Os primeiros oito esticões são mais ou menos retos, mas o nono sai em horizontal para a direita por cerca de 40 m. A idéia era descermos do cume direto para o final do oitavo esticão, mas para isso precisaríamos de muito cuidado. Primeiro porque quando começamos a descer, é difícil corrigir a trajetória, dado que a gravidade nos empurra para baixo, especialmente em um rapel vertical. Segundo porque uma vez que fizéssemos o primeiro rapel e puxássemos as cordas, queimando as caravelas, não dava mais para subir de novo. E, por fim, porque não sabíamos quantos furos a máquina ainda faria, somado ao fato de que dispúnhamos de apenas uma marreta.

Como tínhamos duas cordas de 60 m, a estratégia foi fazer um rapel curto de cerca de 30 m, bater um grampo e de lá esticar a segunda corda em única para estudar a via. No entanto, esse grampo estava muito para a esquerda e não chegaria na via. Optamos por abandonar esse grampo, subimos os dois até o grampo inicial e recomeçamos. Edilso bateu outro grampo, mais para a direita (mais perto da via que subimos) e fizemos o mesmo procedimento. A máquina já dava sinais de desgaste. Optamos por queimar as caravelas desse ponto, dado que já sabíamos bem onde estávamos e, na pior das hipóteses, poderíamos emendar as duas cordas até nossos companheiros mais abaixo. Edilso desceu mais um trecho de rapel e bateu mais um grampo. A dúvida agora era se chegaríamos com apenas uma corda até o final do oitavo esticão. De cima parecia que ia dar, mas com o negativo não tínhamos certeza. Como achávamos que a máquina só bateria mais um grampo, optamos por não duplicar o grampo em que estávamos. Edilso desceria na frente os 30 m e, se precisasse de mais um grampo, ele o bateria. No entanto, se a corda desse, ele voltaria tudo de jumar para duplicar o grampo em que nós estávamos. A corda deu certinho, Edilso voltou para duplicar o grampo e descemos para o final do oitavo esticão. A essa altura já conseguimos nos comunicar com Willy e Josias, que ficaram super contentes com a nossa chegada ao cume. Agora era só buscar o material no buraco e descermos tudo para comemorar. Optamos por não tirar as cordas fixas, pois elas ainda poderiam ser úteis na regrampeação dos trechos finais, ainda não realizada. Após a conquista, a montanha foi consumida por um incêndio de grandes proporções que durou dois dias. Em consequência disso, imaginamos que as cordas tenham sido destruídas.

De volta ao Rio de Janeiro e após conversar com outros companheiros, sugerimos ao Edilso dar à nova via retificadora do cume até o oitavo esticão o nome Descida Josias de Barros. Ele aprovou e acreditamos que nosso grande amigo ficou muito feliz com a homenagem.

Leo



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