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Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Boletim n°3 - Ago. 1999
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UNICERJ nos Andes Centrais em 99

Marmolejo 6.110m



A UNICERJ retornou aos Andes Centrais em 1999 buscando repetir o relativo sucesso que alcançamos no ano passado. Planejamos uma série de atividades em um cronograma apertado, que foi o possível em nossa reduzida escala de férias. Apesar da grande correria, vivenciamos momentos de imensa alegria e realização e pudemos adquirir valiosa experiência, aperfeiçoando nossos conhecimentos técnicos de escalada em gelo, travessia de glaciares e alta montanha. Com paciência e dedicação, vamos nos sentindo cada vez mais capacitados a sonhar com objetivos mais ambiciosos.

No final de 1998 combinamos por telefone com Luiz ("Lucho") Guzmán, diretor da Escuela Nacional de Montaña do Chile, a contratação de um curso de escalada em gelo e locomoção em glaciares, sob os auspícios da Escola. O instrutor do curso foi nosso companheiro Mario Arredondo, que compartilhou conosco uma tentativa de ascensão do Vulcão Tupungato, em fevereiro de 1998. Desembarcamos em Santiago do Chile no dia 25 de janeiro de 1999, eu, Ricardo Borges e Fernando Vieira. No dia seguinte Mário Arnaud se juntou a nós e neste mesmo dia subimos para o povoado de Baños Morales e dali para o Glaciar San Francisco, que se derrama até cerca de 3.000 m de altura aos pés do Cerro San Francisco e do Cerro Morado, ao sudeste de Santiago. Acampamos às margens de uma agradável laguna e na manhã seguinte iniciamos o treinamento intensivo no glaciar, onde aprendemos técnicas de locomoção e asseguramento em glaciares, e os fundamentos de escalada no gelo, com o uso de grampões, piolés, escalada frontal, colocação de parafusos de gelo e montagem de pontos de reunião. Foi um dia tremendamente cansativo e para nós um salto gigantesco no nosso conhecimento das técnicas de gelo. Passamos todo o dia seguinte treinando até o pôr do sol, abordando o resgate de companheiros caídos em gretas, auto-resgate e a travessia de gretas. Contamos com bom tempo durante o curso e conseguimos aproveitamento máximo.

Nossas primeiras escaladas em paredes de geloEntre os dias 29 de janeiro e 9 de fevereiro estivemos envolvidos em uma segunda tentativa de ascensão do Tupungato, liderada por Lucho Guzmán e Mario Arredondo, da qual participamos eu, Borges e Fernando. Esta montanha magnífica, que com 6.570m é a segunda mais alta da região, perdendo apenas para o Aconcágua, revelou-se novamente um osso duro de roer. Após uma forte nevasca que nos atingiu no acampamento baixo de 3.500m, conseguimos subir ao acampamento alto a 5.600m em cinco dias, para nossa surpresa e satisfação nos aclimatando com rapidez muito maior que em 1998. Depois de duas noites de ventos muito fortes, sendo a última delas dormindo todos espremidos em uma barraca, a outra tendo sido destruída pelo vento, fomos obrigados a desistir: o vento parara apenas às 8 horas da manhã, tarde demais para tentar o cume. A comida havia acabado e estávamos debilitados pelas noites pessimamente dormidas. Subimos até 6.000m, na base da canaleta de gelo que leva à aresta do cume, para fazer reconhecimento do terreno, e dali descemos em poucas horas para o acampamento baixo a 3.500m. O Tupungato nos escapara uma segunda vez: a primeira fora após a expedição ao Ojos del Salado, narrada no boletim anterior. Mas a beleza inacreditável deste cerro remoto e selvagem nos tocara a fundo no coração, deixando indelével o desejo de tentar mais uma vez. Como resumiu Lucho Guzmán, que já esteve treze vezes no cume do Aconcágua e que de seis tentativas ao Tupungato fez o cume duas vezes: Uno viene al Tupungato y mismo cuando no sube no se siente derrotado. Em idioma quéchua, Tupungato significa "montanha que atrai as tempestades:"...

Fernando retornou ao Rio de Janeiro e ficamos eu e Borges a decidir o que fazer com os 10 dias que nos restavam. Nosso desejo era misto: treinar ao máximo possível as técnicas que havíamos aprendido no curso, mas também fazer pelo menos um cume. Uma das possibilidades era o Cerro Morado, uma linda e vertiginosa montanha de 5.050m bem ao lado da região onde fizemos o curso. Apesar da pouca altura, trata-se de uma escalada técnica que representaria excelente oportunidade de treinamento. Segundo nossos amigos chilenos, tínhamos condições de fazer a montanha. Mas nos sentíamos também atraídos pelo Marmolejo, que com 6.110m é um dos gigantes da região, logo após o Tupungato. Apesar de mais fácil tecnicamente que o Morado, era um cerro duro e de aproximação trabalhosa, oferecendo também passagens de gelo e uma travessia de glaciar. Conversamos longamente durante o churrasco que Lucho nos ofereceu em sua casa e, levando em conta a opinião dos chilenos, nos inclinamos por este último cerro.

A incrível vista da cascata de gelo vinda do MarmolejoLucho nos deixa em Banõs Morales na manhã do dia 12 de fevereiro. Alugamos mulas para transportar a nós e ao equipamento até o ponto mais alto possível. Cavalgamos pela linda manhã com vistas deslumbrantes para o Vulcão San José de Maipo, bem no fundo do vale onde se encontra Baños Morales. Este lindo cerro é uma atração popular para os andinistas de Santiago, alguns dos quais o escalam em apenas quatro dias. Está adormecido há muitos séculos, mas no dia em que decidir despertar, poderá arrasar a cidade de Santiago, que fica bem no final da trajetória natural da corrida de lava. Subimos rapidamente, até o terreno tornar-se pedregoso demais para as mulas, a cerca de 3.100m. Malocamos parte da carga e a comida de reserva em um pedregal e seguimos com as botas rígidas e mochilas pesadíssimas. Encontramos um grupo de cinco jovens alemães retornando do cerro. Nos disseram que haviam chegado a 6.000m mas que haviam sido obrigados a desistir por causa de ventos muito fortes. Prosseguimos meditando a respeito deste relato. No fim da tarde chegamos a um vale cercado de montanhas, no qual se derramava um enorme glaciar vindo da direção nordeste. Ali montamos o primeiro acampamento, a 3.600m de altura. Mario Arredondo nos havia fornecido uma série de informações para localizarmos o acesso ao glaciar do Marmolejo, mas confrontados com a montanha real as coisas não se revelaram tão fáceis. No dia seguinte, após alguma deliberação, seguimos rumo leste margeando a morena do glaciar por uma crista pedregosa até uns 4.200m. A vista que se descortinava era tremenda: o glaciar despencava suas massas de gelo quase verticalmente por centenas de metros desde o flanco do Marmolejo, formando uma série de imensos séracs que obviamente formavam um obstáculo intransponível para principiantes como nós. O costado do Vulcão San José de Maipo se agigantava à direita, ao sul. A única alternativa seria seguir para o sul, fazendo um longo rodeio por alguns acarreos (encostas de areia e pedra) e evitando o terreno acidentado próximo do glaciar. Esta se revelou a mais dura caminhada de toda a expedição. Subimos pelo terreno pedregoso onde em cada passo para a frente se escorregava um para trás, e penosamente vencemos um desnível total de 1.400m desde o vale até chegar em um pequeno platô a 5.000m, onde havia uma placa de gelo pegada a um rochedo, fundamental para podermos derretê-lo e fazer água para beber e cozinhar. Só chegamos com o sol quase se pondo e tivemos muito trabalho para aplainar o platô o suficiente para espremer nossa barraca. Dormimos nesta noite um sono de pedra.

Cedo na manhã seguinte averiguamos que não seria necessário subir mais: havíamos chegado a uns 5.200m e dali margeamos os flancos do Vulcão San José, mantendo sempre a mesma altura, indo agora para o nordeste, em direção ao Marmolejo e ao topo do glaciar. Atravessamos vários campos de penitentes, caminhando com dificuldade pelo terreno de acarreo, e do alto vislumbramos como o flanco do San José despencava em direção ao glaciar, uns duzentos metros abaixo. Mas no oeste, em direção ao mar, o tempo havia fechado em uma parede cinzenta que cobria o horizonte, e era óbvio que uma tempestade se armava. Não demorou muito e as nuvens estavam sobre nós deixando cair suaves flocos de neve. Estávamos cansados e o mau tempo baixou a moral. Sabíamos que não tínhamos muito tempo para subir a montanha, e se quando estivéssemos em condições de tentar o cume o tempo não cooperasse, teríamos que abandonar a tentativa. Foi exatamente um cronograma pouco flexível que nos havia derrotado no Tupungato este ano. Tínhamos que achar rapidamente um lugar para montar acampamento. Descendo em direção ao glaciar encontramos uma pequena laguna de degelo ao lado de um campo de penitentes: a água líquida economizaria combustível e aí montamos a barraca, a 5.000 m. A neve começou a cair densamente e o vento ganhou corpo.

Foi uma noite para comer bem e conferenciar. Estávamos preocupados com o grande desnível de 1.100m a ser vencido até o cume, muito puxado para um dia de escalada. Uma das idéias seria instalar um acampamento mais alto, onde a crista da montanha definia uma espécie de platô. Mas isto acarretaria em um dia a mais de caminhada e portanto menos um dia de reserva para esperar o tempo melhorar. Lembro-me de que discutimos com ansiedade as várias possibilidades e optamos por tentar o assalto ao cume em um único dia, dedicando o dia seguinte a explorar a travessia do glaciar o máximo que fosse possível. Faríamos assim um bom reconhecimento da rota e ganharíamos confiança para o dia da subida. No dia seguinte acordamos sem pressa, descemos para o glaciar e o atravessamos até uma língua de gelo que descia da crista da montanha. Subimos uns duzentos metros pela encosta até uns 5.200m e voltamos ao acampamento. Ao entardecer o céu clareou e no crepúsculo a montanha se cobriu de um dourado rubro, mas as nuvens logo retornaram e nevou copiosamente à noite.

Acordamos às 5 horas sob um céu estalando de estrelas e um frio de rachar: tudo estava branco ao redor da barraca. Era 16 de fevereiro, o dia da lua nova. Comemos, enchemos as garrafas térmicas com suco quente, vestimos tudo o que tínhamos e saímos antes do céu clarear. Refizemos com presteza o caminho do dia anterior, atravessando o glaciar até a base da encosta gelada que levaria até a crista. Subimos pelo gelo com determinação, escalando o tempo todo na sombra, até sairmos para a rocha negra da crista a uns 5.300m, sendo saudados finalmente pelo sol. Abriram-se vistas espetaculares para o norte com montanhas até se perder de vista. O dia estava perfeito: quase sem vento, sem um fiapo de nuvem, pouco frio. Na crista nosso ritmo se transformou em um arrastar. Como formigas sobre o corpo de um dinossauro, avançamos revezando a mochila. Começamos a nos preocupar com o horário, porque a tarde avançava. Estávamos em dúvida sobre que direção tomar, porque víamos dois picos, um que culminava a crista que subíamos e outro mais distante, à direita, que bem poderia ser o cume verdadeiro. De início pensei que o verdadeiro era o da esquerda e Borges o contrário, mas depois invertemos as opiniões. Sem sabermos, nossa preocupação era infundada porque nosso altímetro havia sido calibrado com uma altitude errada em Baños Morales. Estávamos na verdade a quase 6.000m enquanto nosso altímetro indicava 5.700m. Deliberamos seguir pela mesma crista pedregosa ao invés de fazer uma travessia diagonal para a direita, por um campo de neve. Baixamos a cabeça para o chão e seguimos passo a passo. Tudo acontecia em câmera lenta. Lembro-me que Borges, sem a mochila, se adiantou e lá em cima, levantou os braços brandindo o piolé. Quando me juntei a ele não havia mais o que subir, e a vista se abria em todos as direções no horizonte mais amplo que eu já vi na vida. Bem à nossa frente, no leste, a Punta Unión, o cume secundário do Marmolejo. À direita, ao sul, outro cume secundário, aquele que eu julguei ser o cume verdadeiro e que estava visivelmente algumas dezenas de metros abaixo de nós. Ainda à direita, a cratera do cume do Vulcão San José. Entre o cume do Marmolejo, onde estávamos, e a Punta Unión, um campo de neve imaculado, uma imensidão branca sob a imensidão perfeita de azul do céu. A oeste, o Cerro Morado, o Mesón Alto, o Loma Larga e, atrás deles, o azul brumoso do mar. Mas a vista mais deslumbrante era ao norte. O Tupungato comandava seus imensos glaciares e paredões, reinando absoluto sobre um mar de montanhas menores: víamos exatamente o lado oposto do que havíamos usado para nossa tentativa. Mais ao longe, a cem quilômetros de distância, o Aconcágua, e mais longe ainda, o Mercedário, imensos e brancos no horizonte.

Saíramos do acampamento às 6:45, chegando no cume às 16:25: quase dez horas para vencer 1.100m. Nossa alegria era imensa, mas a minha era especial, pois em nossa expedição anterior eu não fizera nenhum cume. Desfraldamos a flâmula UNICERJ e nos fartamos de fotografar a paisagem. Mas o sol já se deitava e não podíamos nos demorar. Descemos em quatro horas até o glaciar, e o atravessamos com muito cuidado, pois o dia quente havia derretido toda superfície de gelo, que se transformara em uma sopa de água e neve. O sol poente havia transformado a montanha em uma grande muralha de fogo que paramos, maravilhados, para contemplar. Ao chegarmos no acampamento, completamente exaustos, vimos brilhantes, sobre o oeste, os planetas Vênus e Júpiter, lado a lado no céu.

No dia seguinte descemos os 1.400m até o primeiro acampamento e fizemos um lauto jantar. O bom tempo perdurou: descemos em um dia de caminhada até Baños Morales e daí até Santiago. Nossas férias haviam terminado. Do avião, no dia 20 de fevereiro, vimos o mar de montanhas dos Andes e pensamos com a certeza que pertence ao coração: voltaremos...

Gustavo Mello

Registramos nossa aventura no livro de cume. Visual alucinante desfrutado por uma média de 2 expedições ao ano


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