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Boletim n°3 - Ago. 1999
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Cerro Torre

40 Anos de Controvérsia nos Andes Patagônicos

O nosso Diretor Técnico, Santa Cruz, nos conta um pouco do que estudou e pesquisou da epopéia humana vivida há 40 anos na primeira escalada ao Cerro Torre, na Patagônia. A controvérsia da conquista prossegue até os dias de hoje. Mereceu inclusive a reportagem de capa da revista Climbing, edição de maio de 1999, de onde várias informações foram tiradas.

Em 1959, ocorreu no Cerro Torre, no Sul da Argentina, uma das mais famosas expedições visando o cume de uma montanha. De fato, esta escalada pode ter sido a mais desafiadora de todos os tempos.

O Cerro Torre não é a montanha mais alta do Parque Nacional de Los Glaciares, mas é a que tem a história mais conhecida, em função de sua estrema dificuldade e também por causa da polêmica que há 40 anos existe quanto à sua conquista.

Desde 1953, quando Lionel Terray e Guido Magnone escalaram o Fitz Roy, que é o pico culminante da região, o interesse dos maiores escaladores do planeta se voltou para uma montanha ainda mais assombrosa, o Cerro Torre, um pico pontiagudo incrustado de neve e gelo, defendido por paredões vertiginosos por todos os lados e constantemente varrido pelos furiosos ventos da Patagônia.

Localizado na província argentina de Santa Cruz, o Cerro Torre tem uma aura de magia, que talvez só possa ser aquilatada por aqueles que já chegaram ao menos nas imediações de sua base.

No verão de 1996, em companhia de Willy Chen, tive a ventura de me aproximar um pouco do Cerro Torre, que só conhecia de fotografias, filmes, artigos de revistas e livros. Posso assegurar que a presença real da montanha tão perto e tão abrupta, superou todas as expectativas. Olhando de baixo, era como se aquele prumo sem fim tocasse o céu.

Foi quando mais uma vez visitamos os Parques Nacionais argentinos e chilenos, em especial Los Glaciares e Torres del Paine, bem como a Terra do Fogo.

Para nós, do Rio de Janeiro, que estamos acostumados ao cálido Pão de Açúcar, que fazemos nossas caminhadas na verdejante Floresta da Tijuca e escalamos na luxuriante Serra dos Órgãos, trata-se de uma realidade muito diferente. Não significa dizer que as montanhas da Patagônia são mais bonitas, visto que não existe padrão de comparação e temos em nosso país maravilhas como o Planalto do Itatiaia, os Três Picos de Salinas e a própria Serra dos Órgãos, que extrapolam todos os limites de fascinação. Mas a verdade é que a Patagônia possui uma beleza insólita, inusitada e desconcertante, que merece ser conhecida e vivenciada, por todos os seres humanos que amam a natureza e são montanhistas de coração.

Já bastaria saber que faz parte da mais austral região do planeta, constituindo uma das últimas fronteiras da Terra. Se nos lembramos que existe uma boa infra-estrutura, tanto na Argentina quanto no Chile, com Parques Nacionais bem cuidados e calorosa hospitalidade, não dá para entender por que há tão poucos brasileiros caminhando e escalando nos Andes Patagônicos.

Na ocasião, entre tantas travessias realizadas, fizemos questão de caminhar até a linha de neve do Cerro Torre e quando, pela primeira vez, conseguimos chegar próximo à base daquela montanha assustadoramente bela, ficamos várias horas respeitosamente parados no topo de um pequeno penhasco, contemplando aquele portentoso monumento natural, que tem tantas histórias de grandeza e desespero, só comparadas, talvez, às mais desafiadoras montanhas do Himalaia, milhares de metros mais altas.

O Everest e o K2, as duas montanhas mais altas do mundo, já tinham sido conquistados bem como outros gigantes de mais de 8000 metros e o Cerro Torre continuava impávido e intocado pelos seres humanos.

Para os mais renomados escaladores dos anos 50 o Cerro Torre consistia o mais cobiçado prêmio.

Até o ano de 1959, várias tentativas de assalto ao pico foram tentadas, incluindo esforços indômitos de escaladores notáveis como Water Bonatti e Carlo Mauri, que não obstante, fracassaram. A sucessão de tentativas e fracassos no Cerro Torre é quase interminável. É aí que surge o nome de Cesare Maestri, que juntamente com Toni Egger podem ter triunfado ante o que parecia ser impossível.

No início dos anos 50, Cesari Maestri, nascido em Trento em 1929, já era um dos mais famosos alpinistas italianos. Ele era conhecido como A ARANHA DAS DOLOMITAS, tamanho o seu talento como escalador.

Nos anos 50, Após a conquista do Fitz Roy, todas as atenções se voltaram para o Cerro Torre, que embora seja mais baixo é muito mais difícil e perigoso.

Foi por essa época que Cesarino Fava, um escalador italiano que vivia na Argentina, escreveu uma carta entusiasmada sobre as possibilidades de se conquistar o Cerro Torre. A carta era endereçada a Maestri. Como não dispunha do endereço, no envelope, Fava escreveu simplesmente:


(Hoje Maestri talvez tivesse e-mail, home page e o escambau, e provavelmente não escalaria tanto. Sinal dos tempos...)

É evidente que a carta chegou ao destinatário. Foi aí que a obsessão de Cesare Maestri pelo Cerro Torre começou.

É bom lembrarmos que na ocasião, muito mais do que hoje, a região mais meridional da América do Sul era quase completamente despovoada. Não havia as prósperas cidades que hoje existem e a região era praticamente um imenso deserto. Só para se ter uma idéia, levava-se sete dias de viagem de Buenos Aires até o vilarejo de El Chalten, de onde se tem uma vista espetacular das montanhas de Los Glaciares, incluindo o majestoso Fitz Roy e o magistral Cerro Torre.

Cesarino Fava tinha um sério problema para um escalador, pois perdera parte dos dois pés, amputados devido a um congelamento, após ter resgatado um grupo de americanos, em 1950, numa tempestade perto do cume do Aconcágua. Eles tinham sido desertados pelo seu guia (com letra minúscula mesmo, pois um Guia não abandona seus companheiros).

O heroísmo de Fava trouxe para ele uma grande limitação, pois precisou reaprender a escalar com calçados especiais. Esse fato contudo talvez tenha aumentado ainda mais o seu amor pelas montanhas. Ele hoje vive na Itália e é parte da história ao mesmo tempo fascinante, trágica e enigmática da conquista do Cerro Torre.

Em 1958, Maestri e Fava organizaram a primeira expedição de reconhecimento ao Cerro Torre. Tiveram oportunidade de construir uma sólida amizade e combinaram voltar no ano seguinte. Sonhavam com a possibilidade real de fazer a conquista pela Face Norte. Outros como Bonatti e Mauri, na mesma época, tentaram sem sucesso, subir pela Face Oeste. O fato é que por todos os lados que se olhe o Torre parece inexpugnável. Só mesmo muita paixão humana pode explicar como, mesmo com todos os riscos envolvidos, se tem gana de escalar algo tão absurdo.

Para a sua segunda expedição à Patagônia Argentina, visando a conquista do Cerro Torre, Maestri convidou o escalador austríaco Toni Egger, um grande alpinista, tão bom quanto o próprio Maestri. Eles constituíram uma dupla infernal com reais chances de sucesso na conquista da mais desafiadora das montanhas. Hoje, em homenagem a Egger, a montanha ao lado do Cerro Torre, uma bela agulha, leva o seu nome: Torre Egger.

Dá para perceber que alguma tragédia ocorreu na tentativa de conquista feita por Maestri, Fava e Egger. De fato, durante a escalada, Fava ajudou no que pode, mas retornou sozinho à base e nos cinco dias seguintes Maestri e Egger teriam prosseguido até o cume. No retorno Egger morreu. (seu corpo congelado só foi achado em 1976, 17 anos após). Quando Fava encontrou Maestri, próximo ao acampamento base, ele estava desesperado e inconsolado com a morte do companheiro caído.

Apesar de atormentado pela tragédia, não foram poucos os que duvidaram da história contada por Maestri, e, como a câmara fotográfica com os registros da chegada ao cume se perderam na avalanche que vitimou Egger, os céticos começaram a insinuar que Maestri e Egger nunca chegaram ao topo do Cerro Torre.

Vale a pena comentar que Toni Egger era um escalador clássico e cuidadoso, ao contrário de Cesare Maestri que tinha uma forma tão arrojada de escalar, que para alguns poderia ser considerado temerário. Contudo, por paradoxal que possa parecer, foi Egger quem morreu no Cerro Torre e não Maestri.

Maestri passou a se sentir esmagado com tudo o que aconteceu no Torre, se fechando em silêncio, o que só aumentava a quantidade dos que diziam que o Torre nunca tinha sido escalado.

Se por um lado o grande Lionel Terray, o escalador francês de tantas conquistas no Himalaia e nos Andes, acreditava no feito trágico de Maestri e Egger, considerando a conquista do Torre como sendo "o maior feito montanhístico de todos os tempos", outros não pensavam assim. Terray, que morreu num acidente estúpido em 1965, não veria a polêmica tomar conta do Cerro Torre, a partir do final dos anos 60. Outro grande alpinista, Carlo Mauri, italiano e rival de Maestri, que havia tentado escalar o Torre duas vezes e fracassado em ambas, publicou em 1969, um artigo se referindo ao Cerro Torre como uma montanha que nunca tinha sido galgada até então. Mauri não deixava por menos. Suas derrotas no Cerro Torre foram tão acachapantes que ele prometeu nunca mais voltar lá. E assim o fez.

Maestri continuou em silêncio. Por sua vez, o editor inglês Ken Wilson, que nunca esteve na Patagônia, e só conhece o Cerro Torre de ouvir falar, publicou vários artigos questionando o silêncio de Maestri, argumentando: "se você faz a mais importante escalada do mundo, por que se recusa a falar dela?" Para os detratores de Maestri, o fato de ter perdido o companheiro de cordada, na luta titânica para sair do inferno do Cerro Torre, não parece ser um argumento suficiente.

O fato é que em 1971, 12 anos após à polêmica conquista, Maestri voltou a escalar o Cerro Torre. Mas não se livrou das controvérsias, pois para seus detratores não bastava subir a montanha uma, duas vezes. Agora era também uma questão de estilo. Muitas dessas pessoas não passam de burocratas do montanhismo e não obstante suas limitações existenciais, insistem em estabelecer normas que toda uma comunidade tem que seguir. Tudo porque Maestri e seus companheiros Ezio Alimonta e Carlo Claus utilizaram um compressor, para que os 350 grampos fossem batidos, na Face Sudeste. Na opinião de Maestri a utilização do compressor não tirou o mérito de sua 2ª escalada ao Cerro Torre. O fato é que passados 12 anos desde a primeira ascensão não confirmada, ninguém havia conseguido escalar a montanha fatídica, mesmo que mais de vinte tentativas tivessem sido realizadas. Vale dizer que todas essas expedições fracassaram rotundamente.

Quatro décadas completadas desde a morte de Egger, muitas foram as vítimas do Cerro Torre, que já foi escalado por várias vias, inclusive pela Face Oeste como sonharam Bonatti e Mauri (Via Casimiro Ferrari, 1974). Por sua vez, a Rota do Compressor, questionada inicialmente pelos sectários que muitas vezes não ousam ir à montanha, tem sido escalada com certa regularidade e é hoje uma das vias clássicas do Cerro Torre. Contudo, até hoje não se conseguiu repetir integralmente a via Maestri-Egger. Em 40 anos a montanha pode ter mudado bastante, ainda mais numa região onde vendavais titânicos, nevascas assustadoras e avalanches gigantescas ocorrem com relativa freqüência. Basta dizer que os habitantes da Patagônia se orgulham de viver em uma região, onde pode-se ter as quatro estações do ano num mesmo dia.

Passado todo esse tempo, desde 1959 até hoje, não se pode dizer com certeza que Maestri e Egger tenham ou não escalado o Cerro Torre. Vestígios da escalada original têm sido encontrados na Face Norte do Cerro Torre, mas por enquanto, muito distantes do cume. Se forem encontrados mais acima, mostrarão inquestionavelmente que Maestri todo esse tempo diz a verdade.

Mesmo os mais céticos se pressionados admitirão que Maestri e Egger podem ter subido o Cerro Torre em 1959. Contudo esse assunto parece já ter ido muito longe. É uma questão de honra e dignidade.

Ou se acredita em Maestri ou não. Nós preferimos acreditar. O mais dramático de toda essa história é saber que Cesare Maestri, 70 anos, sofrendo de câncer, provavelmente morrerá sem receber o reconhecimento de sua memorável escalada.

Santa Cruz


A poesia que publicamos a seguir, de autoria de Maestri, talvez ajude a compreender os seus sentimentos.

PELA MORTE DE UM COMPANHEIRO CAÍDO

Que mulher beijará teus lábios e teus olhos.
Que homem se ligará à tua corda.
Que martelo será usado por ti.
Se apenas resta pó e pranto.
Quem poderá ainda abraçar-te,
Agora que a dor cortou as veias enchendo os olhos de sangue.
Quem poderá acordar-te,
Se os sinos não tocam e o dia está maravilhoso.
Quem sacudirá esse lençol de terra que te pesa sobre os olhos.
Quem desatará o nó que te aperta a cintura.
Quem calçará os teus sapatos e se meterá no teu saco de dormir,
Ou imitará o ruído do vento para acariciar os cabelos.
Deixai de gritar. Deixai de fazer silêncio. Porque agora ele anda no ar,
Nas corolas das flores, nas abelhas e no mel.
Descerá, branco, pelas rumorosas torrentes, nadará nos mares infinitos,
Estará no azul do céu, no verde dos campos e em todos os poentes.
Há de girar nos ponteiros dos relógios.
Será árvore que mal plantada desmesuradamente logo cresce.
Havemos de encontrá-los nos ninhos, nos baloiços das crianças.
Havemos de o beber com a água, de respirar com ar.
Sairá das neves com as primeiras flores.
Ouvi-lo-emos em todos os violinos do mundo
Havemos de vê-lo nos quadros, no arco-íris,
Senti-lo-emos no uivar do vento, no silêncio absoluto
Voará sobre as cristas dos montes, sobre as ondas dos lagos.
Estreitará com seus braços de terra esse pequeno mundo
E terá vencido a morte perdendo a vida,
Como um menino perde o caderno ao correr para escola.

Cesare Maestri


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