Boletim n°2 - Jan. 1999

Ojos del Salado

O Segundo Gigante dos Andes - Chile

Foram 13 dias até o cumeA UNICERJ marcou presença nos Andes Centrais em 1998 com a ascensão do vulcão Ojos del Salado, a segunda montanha mais alta dos Andes e do hemisfério ocidental, com 6.885metros de altura. Situada cerca de 800 Km ao norte do Aconcágua e da capital chilena, Santiago, o Ojos del Salado faz parte da fronteira internacional entre o Chile e a Argentina. Esta montanha permaneceu durante muitos anos no centro de uma grande controvérsia. Sua primeira ascensão registrada foi em 1937, por dois poloneses. Em 1955, entretanto, uma equipe chilena escalou a montanha e alegou que a altitude da mesma era de 7.100m, o que a tornaria mais alta que o Aconcágua. Esta controvérsia gerou considerável comoção no meio montanhístico e só foi solucionada em 1956, por uma equipe do Clube Alpino Americano, que estabeleceu a cota atualmente aceita, com bastante precisão. O Ojos del Salado disputa com o Cotopaxi, no Equador, o título de vulcão ativo mais elevado do mundo, pois há atividade intermitente de fumarolas próximo à borda de sua cratera. Uma característica marcante do Ojos é o acesso relativamente fácil com veículos de tração nas quatro rodas, a partir da cidade mineira de Copiapó. Gozando de condições climáticas benignas devido à relativa estabilidade climática do deserto de Atacama, o Ojos é uma das mais interessantes montanhas andinas, sendo um tanto surpreendente a existência de pouca informação a seu respeito. Esta foi uma das montanhas escolhidas para a expedição andina UNICERJ de 1998.

Eu havia passado o mês de janeiro de 1998 viajando pelo sul do Chile, com minha esposa Rita Montezuma e minha filha Aymara, de um ano. No dia 28 de janeiro, Ricardo Borges chega a Santiago, e acertamos os últimos detalhes logísticos da viagem, que havíamos deixado planejada desde dezembro. Saímos no dia 29 de janeiro, de ônibus, rumo a Copiapó. No dia 30 resolvemos todas as compras de mantimentos e o aluguel de uma possante picape Toyota, com tração nas quatro rodas, para a viagem à base da montanha. Dirigimos rumo à cordilheira, à leste, durante toda a tarde e o princípio da noite. Chegamos no refúgio da CONAF (Corporación Nacional Florestal, que equivale no Chile ao nosso IBAMA) às margens da Laguna Santa Rosa e da grande depressão salgada (salar) de Maricunga. A 3.850m de altura, o refúgio, todo construído em madeira, oferece ótimo abrigo contra as baixas temperaturas noturnas e os fortes e perenes ventos da região. Esta noite, faço uma rápida viagem de ida e volta à Mina Marte para auxiliar dois mineiros que tiveram seu veículo quebrado na estrada. A região do Ojos del Salado é uma das mais ricas do Chile em recursos minerais, com extração de ouro e cobre, entre outros minerais valiosos. No dia seguinte subimos um dos muitos cerros arredondados da vizinhança, subindo até 4.400m para forçar a aclimatação: a paisagem era belíssima e desolada com os cerros desérticos ao redor e os grupos de flamingos na laguna, e, no horizonte leste, os Nevados Tres Cruces, de 6.340m de altura. Passamos mais uma noite no Refúgio Santa Rosa e partimos rumo à Laguna Verde, em direção à fronteira com a Argentina. As paisagens se tornam cada vez mais espetaculares à medida que subimos e circundamos os três cumes do Nevado Tres Cruces, até que subitamente vemos no horizonte sul, distante, a silhueta do Ojos del Salado, juntamente com seu companheiro menor, o Nevado El Muerto, com 6.540m. Acampamos nesta noite às margens da Laguna Verde, de águas cor de esmeralda iridescente, incrivelmente bela, a 4.400m de altura. O vento soprava sem descanso, noite e dia, e tudo parecia completamente seco e sem vida. Começamos um lento período de aclimatação à altura. Não me sinto bem: dores de cabeça constantes e uma fraqueza semelhante à de um resfriado, mas estes são sintomas normais de início de aclimatação. Ricardo Borges se adapta melhor do que eu, e se encarrega dos serviços mais pesados do acampamento. Aí passamos mais quatro dias completos em aclimatação, fazendo caminhadas curtas ao redor do lago, até que me sinto suficientemente bem para subirmos mais. Desfrutamos bastante dos deliciosos banhos termais às margens da Laguna, protegidos do vento por uma espécie de cabana de madeira, e usados frequentemente pelos carabineros do posto fronteiriço. Fazemos amizade com Ricardo Morales, um chileno muito simpático que estava tentando o Ojos sozinho, e já havia escalado o Aconcágua. Ele aproveita nossa carona, pois sua picape não tinha condições de subir até a base do Ojos del Salado.

No dia 6 de fevereiro, aniversário do meu pai, seguimos rumo ao sul tendo a montanha sempre à nossa frente. Utilizamos com frequência a tração nas quatro rodas: a "estrada" (um mero vestígio de pneus que já haviam passado desde o início da temporada) é incrivelmente acidentada e infestada de imensas pedras. Subimos apreciando a paisagem cada vez mais lunar até o Refúgio Atacama, a 5.200m de altura, do qual se descortinam vistas espetaculares para o Ojos del Salado, o El Muerto e o Nevado Barrancas Blancas, de 6.110m. Havia já um numeroso grupo de italianos e alemães com dois guias chilenos, que haviam deixado a Laguna Verde pouco antes de nós, além de uma dupla de alemães. Chegam junto conosco um bem-humorado grupo de estudantes da Universidade de Bío-Bío, do sul do Chile, muito jovens, e um outro grupo da Universidade Católica de Santiago. O refúgio havia sido lotado pelos italianos e alemães, que o utilizavam como cozinha e refeitório, de modo que mais uma vez montamos nossa barraca e iniciamos novo período de aclimatação.

Gustavo em nosso acampamento a 4.400mA paisagem era cercada de campos de nieve penitentes, que podiam ser usadas para produzir água com os fogareiros, mas havíamos levado bom provimento de água mineral. A próxima parada da ascensão era o Refúgio Cesar Tejos, a 5.750m de altura, de onde se faz o ataque ao cume. Os italianos e alemães sobem para o refúgio: Borges e Ricardo Morales, que se sentem bem melhor que eu, sobem também, levando um pouco de comida e água para o nosso próprio assalto ao cume. Ricardo Morales vai decidido a tentar o cume no dia seguinte, com os alemães: é um sujeito forte e decidido. Chego à conclusão que minha má aclimatação é devida à preocupação com minha esposa e filha, que seguiram viagem para o norte do Chile juntamente com uma amiga e companheira da UNICERJ, Adriana Lanziotti. São muitos os sacrifícios que impomos às nossas famílias para subir as montanhas: essa minha falta de concentração que Morales, mais experiente, já havia diagnosticado na Laguna Verde, se revelaria fatal para minha ambição de chegar ao cume, apesar da forte preparação física a que me havia submetido desde julho de 1997. Borges desce do Tejos no final da tarde, cansado mas satisfeito. Deixo-o descansar, assumindo os serviços de cozinha. À noite faz cerca de 10 graus abaixo de zero. Para meu desânimo, não me sinto melhor à medida que o tempo passa, ao contrário de Borges. No dia 8 de fevereiro o tempo vira: nuvens são sopradas do oeste, da direção do mar, e o ar se enche de flocos de neve. Eu e Borges subimos para o Tejos, com comida e água. Tenho péssimo desempenho, subindo em cinco horas, tempo muito maior do que a média dos demais. Sinto a cabeça levíssima, como se estivesse destacado da realidade, o que deixa Borges preocupado. O grupo de italianos e alemães tenta o cume neste dia, junto com Ricardo Morales, mas são obrigados a desistir próximos da borda da cratera, a quase 6.800m de altura, pelos ventos fortes e frio intenso. Um dos guias chilenos do grupo ítalo-alemão realiza façanha considerável, ao ser o único a atingir o cume neste dia, sob condições atrozes e sensação térmica estimada pelos demais de seu grupo como sendo de 30 graus negativos. Todos retornam ao Refúgio Atacama, com exceção do grupo da Universidade Católica, que decide pernoitar no refúgio.

A neve cai densamente sobre toda a região. Confraternizamos à noite comendo e conversando no abrigo. A tempestade, com ventos fortes, prossegue por todo o dia seguinte: toda a paisagem se torna branca. Os ítalo-alemães descem, e Ricardo Morales desiste do cume, descendo de carona com eles. Dividimos o dia com os jovens chilenos da Universidade de Bío-Bío, lendo, contando piadas e jogando cartas no refúgio. Temos que retirar constantemente a neve que se acumula sobre a barraca. Eu e Borges sabíamos que nossas chances de fazer o cume desapareceriam se o tempo não melhorasse. Como por mágica o dia seguinte abre com um céu de um azul intenso, iluminando a paisagem polar que se oferece a nossos olhos maravilhados: até o horizonte, tudo absolutamente branco. A temperatura permanece abaixo de zero durante todo o dia. Apesar de me sentir melhor, sei que não estou bem aclimatado. Borges sobe com os jovens chilenos e as duplas alemã e francesa para o Refúgio Tejos. Travo uma rápida luta comigo mesmo ao enfrentar a decisão de subir com eles ou não. Não era impossível que eu chegasse ao cume nas condições em que estava, mas eu sabia que iria atrasá-los consideravelmente, e, desconcentrado e mal aclimatado, me arriscaria a um edema pulmonar que poderia me custar a saúde ou até mesmo a vida. Vejo-os subir, motivados, a trilha para o Tejos, e desejo a Borges, meu companheiro de 10 anos de todo tipo de escalada, a melhor de todas as sortes. Montanhista cujas grandes qualidades são a força física, a concentração e a frieza diante dos problemas, eu estava confiante de suas chances de fazer o cume. A única tentativa estaria restrita ao dia seguinte, 11 de fevereiro, pois teríamos que descer para Copiapó em breve. O grupo da Católica desce do Tejos: haviam passado no refúgio o dia mais intenso da tempestade. Parte do grupo de chilenos da Universidade de Bío-Bío fica comigo no refúgio, e o lugar se enche de tranquilidade e solidão.

No dia seguinte o grupo da Católica desce rumo à civilização, encerrando sua tentativa. O dia permanece com tempo bom, mas nada sabemos da tentativa de cume. No fim da tarde, após uma soneca, subitamente percebo que meu organismo decidira colaborar, mas infelizmente tarde demais: sinto-me bem, e sou tomado por uma espécie de euforia. Saio correndo e pulando em volta do abrigo como quem comemora um gol, e chego a dar algumas cambalhotas. Desenvolvo febrilmente um esquema delirante de subir de modo relâmpago ao Tejos para tentar o cume no dia seguinte, mas o bom senso me mostra que todos com certeza teriam tentado o cume naquele mesmo dia, de modo que eu teria que tentar o cume sozinho enquanto Borges me esperasse, o que não se adequava bem às nossas concepções de segurança na montanha. Diante da incerteza quanto ao meu estado físico, não haveria ninguém para me auxiliar se eu tivesse qualquer problema. Refaço minha paz com o universo ao chorar discretamente, sentado dentro do abrigo: aquela montanha era o sonho e o projeto de alguns anos, mas eu tinha a certeza de que retornaria. Passo uma noite ansiosa imaginando se Borges teria feito o cume: meu apetite, que permanecera fraco, abre-se subitamente e devasto nossas provisões com prodigalidade.

Acordo cedo no dia seguinte, que se abre ensolarado, e me dedico à tarefa de desmontar a barraca, que fora congelada no solo durante a tempestade, o que me consome duas horas de trabalho. Todos vão descendo aos poucos: Borges chega com os chilenos: os alemães que desceram na frente já me haviam dito que ele fizera o cume.

"...Saímos do abrigo às 4 da manhã sob condições climáticas excelentes. Começamos a caminhar e, à medida que consultava o altímetro, percebia a subida lenta e o quanto ainda havia pela frente. Apesar do incentivo constante dos chilenos, meu cansaço era extremo. Numa fração de segundo minha cabeça começou a girar em torno dos meses de trabalho que eu e Gustavo havíamos vencido para estar ali. Pude imaginar como ele se sentia por ser o grande idealizador da excursão e não ter se aclimatado a tempo de tentarmos juntos o cume. Então percebi que se eu conseguisse chegar ao topo não seria apenas um êxito meu, e sim da expedição. Assim, resolvi prosseguir e às 16:00 usei o que restava de coordenação motora para assinar o livro de cume do Ojos del Salado..."

Nossa expedição fora um sucesso! Corro para abraçá-lo aos brados de "Meu garoto !", e ao fazê-lo cravo minhas mãos nos grampões que ele carregava nas costas, abrindo dois talhos que em nada diminuíram meu entusiasmo. Ofegante, mas com a felicidade estampada no rosto, ele me conta da ascensão de modo telegráfico, em frases curtas: garantira que não fora nada fácil. Os acontecimentos se aceleram quando percebo que todos queriam descer naquele mesmo dia para Copiapó. Freneticamente carregamos nossa caminhoneta com toda nossa tralha e mais a de quatro dos chilenos de Bío-Bío, a quem daríamos carona. Pesadíssima, mesmo assim a Toyota não se intimida com as condições atrozes da estrada, enfrentando lama e neve com igual competência. Após cinco cansativas horas, chegamos a Copiapó, tendo descido 4.400 metros de desnível. A cabeça transmite uma sensação engraçada, quase que etérea. Pouco tempo depois estávamos enfiados em um ônibus para Santiago, sem sequer termos tomado um banho. A razão para esta pressa é que tínhamos outro compromisso agendado em Santiago: a tentativa de subir o vulcão Tupungato, de 6.560 metros.

Mas esta é uma outra história . . .

Mapa


Gustavo Mello



UNICERJ - União de Caminhantes e Escaladores Rio de Janeiro - http://www.unicerj.org.br