O Pé
Eduardo Galeano* | Tradução de Anamaria Ladeira em homenagem ao Santa Cruz.
Muitos não voltaram. Muitos dos cidadãos do mundo que lutaram pela república espanhola, debaixo de terra espanhola ficaram.
Abe Osheroff, da Brigada Lincoln, sobreviveu.
Um balaço lhe havia arruinado uma perna. Com um pé quieto e o outro pé caminhando, regressou ao seu país.
Espanha foi sua primeira guerra perdida. E desde então, levado pelo seu pé andarilho, Abe não parou.
Apesar das traições e das derrotas, das surras e das prisões, não parou. Um pé não podia, mas o outro pé queria e seguia. Um pé lhe dizia: eu paro aqui, mas o outro decidia: eu te levo lá. E uma e outra vez, esse pé, o andante, voltava ao caminho porque o caminho é o destino.
E esse pé carregava Abe pelos Estados Unidos, de ponta a ponta, de mar a mar, e o metia em confusões, uma confusão maior que a outra, contra a caça às bruxas de MacCarthy e a guerra da Coréia e a segregação racial e a pena de morte e o golpe de estado no Irã e o crime em Guatemala e a matança no Vietnã e o banho de sangue na Indonésia e as explosões atômicas no Japão e o bloqueio de Cuba e a quartelada no Chile e asfixia da Nicarágua e a invasão de Panamá e os bombardeios ao Iraque e à Iugoslávia e ao Afeganistão e outra vez ao Iraque e...
Abe já tinha noventa anos e seguia sendo um caminhante, quando seu amigo Tony Geist lhe perguntou, só por perguntar, como ele andava. Ele levantou sua cabeça de leão de juba branca e sorriu de orelha a orelha:
- Aqui ando, com um pé na tumba e o outro pé bailando.
*Escritor uruguaio nascido em 1940, autor de “Veias Abertas da América Latina”. Há uma via conquistada pela Unicerj em sua homenagem, no Morro da Babilônia: Var. Eduardo Galeano, localizada quase no fim do Par. Entropia.
|